Vai longe a diferença entre o ato de nadar e a natação esportiva. No Rio de Janeiro, a modalidade só deu as primeiras braçadas por volta de 1850, quando as disputas organizadas passaram a atrair o interesse do público e a prática regular deste tipo de exercício se tornou sinônimo de civilidade. Até então, a grande faixa litorânea da cidade se prestava, essencialmente, à navegação, à pesca e ao despejo dos dejetos produzidos pela população, já que não existia uma rede de esgoto. Na atualidade, áreas de conhecimento bem distintas, como Moda e História, buscam recuperar de que maneira o carioca descobriu a natação e, também, em que medida ela se relaciona com nossa predileção pelo lazer à beira-mar até hoje.
Natação ganhou destaque até em obras de ficção
O condicionamento físico e a musculatura desenvolvida pela natação foram os melhores cartões de visita possíveis. De acordo com o pesquisador Victor Andrade de Melo, a popularização do esporte deve muito a referências publicadas em obras de Raul Pompeia (O Ateneu, 1888), Aluísio Azevedo (O Coruja, 1890), Artur de Azevedo (Capital Federal, 1897) e Machado de Assis (Dom Casmurro, 1899). Também os articulistas de jornais começaram a associar um suposto novo modelo de performance masculina – e uma respectiva personalidade disposta a enfrentar desafios – com as demandas pela modernização urbanística da cidade e, mais do que isso, pela modernização da sociedade fluminense. “Em 1856, José de Alencar, na primeira página do Diário do Rio de Janeiro, ao comentar a utilidade de se estabelecer um código municipal de posturas, sugeriu a necessidade de criação de escolas de natação, inseridas em uma maior dinamização dos divertimentos públicos, a seu ver fundamentais para o avanço dos costumes na sociedade da corte”, afirma o historiador no artigo Enfrentando os desafios do mar: a natação no Rio de Janeiro do século XIX (anos 1850-1890).
O avanço do hábito da natação está relacionado à vulgarização dos banhos de mar, que favoreceu, também, a preocupação com a limpeza das praias. Tudo dizia respeito ao que os médicos chamavam de hidroterapia, em prol da saúde dos indivíduos e, também, da saúde pública. Surgiam casas de banho e casas de saúde que ofereciam tratamentos para o bem-estar físico e mental, como a Dr.Eiras, inaugurada como um instituto de hidroterapia antes de se tornar um conhecido hospital psiquiátrico.
O tema aparecia transversalmente nos periódicos médicos pelo menos desde 1836, quando um artigo sobre atendimento aos afogados foi publicado na Revista Médica Fluminense. No entanto, à medida que os casos se tornavam mais comuns e, principalmente, se tivessem como ingrediente o socorro prestado por algum nadador, ganhavam contornos folhetinescos de grande interesse para a imprensa diária. “Esses heróis eram das mais diversas formas reconhecidos, com agradecimentos públicos, agrados financeiros ou presentes, até mesmo condecorações”, descreve Victor de Melo. O auge desse processo de divulgação aconteceu, justamente, a partir do momento em que, depois de se transformar de prática terapêutica a forma de entretenimento – inclusive com acrobatas aquáticos, chamados de “aqualoucos”, incorporados ao circo e à celebração do carnaval – a natação passou a ser entendida também como esporte de competição.
Mananciais atraíram empreendimentos
Em fevereiro de 1877, o Diário do Rio de Janeiro publicava que o governo imperial havia autorizado o engenheiro italiano Joseph Fogliani a construir um estabelecimento destinado a oferecer aulas de natação na região da Tijuca. Adicionalmente, seria oferecido um subsídio para atendimento dos alunos da rede pública de ensino, o que gerou críticas de quem considerava a iniciativa prejudicial às finanças públicas. De qualquer forma, o projeto jamais saiu do papel. Em pouco tempo, contudo, o setor de serviços do bairro vislumbrou no novo nicho um interesse crescente e anunciava instalações diferenciadas, que agregavam ao negócio a ideia de modernidade e sofisticação.
Como o Hotel Tijuca, que de espaço de recuperação da saúde buscava ampliar a clientela junto a famílias em busca de lazer. Ou o Hotel do Comércio da Tijuca, dedicado à hospedagem de executivos. Ou, ainda, o Hotel Ville Moreau, que usava como chamariz publicitário a referência a “um grande tanque de natação sem igual na América do Sul”. Às vezes chamados de “banheiros de natação”, esses repositórios eram alimentados pelas águas puras dos rios. Também em Laranjeiras começavam a surgir casas e chácaras para aluguel que dispunham desses verdadeiros “avôs” das piscinas.
Hospedarias dedicadas aos turistas vindos de fora, concentrados na área do Centro, focavam seus anúncios na questão do asseio. Merece destaque o Hotel Jourdain, que publicava anúncios em inglês e francês, além do português, e contava com “um grande banheiro para natação”. Em breve se iniciaria uma oferta intensa de artigos relacionados ao mais recente objeto do desejo de cariocas e visitantes da cidade: boias de salvação, cintas de natação para quem quisesse aprender a nadar sem risco e, principalmente, um segmento do vestuário especializado no público feminino.
Vetustos ancestrais dos biquínis
Calças largas até o tornozelo e blusão com gola de marinheiro, confeccionados com um tecido pesado e áspero em azul marinho. Alguns modelos eram bordados. Sapatos de lona e corda, amarrados na perna. Para completar o figurino, uma touca com babados ou um chapelão de aba larga. No fim da década de 1870, as primeiras damas apareciam para nadar na praia do Boqueirão do Passeio, situada próxima do atual Aeroporto Santos Dumont. Publicações femininas chegavam a ter correspondentes que, a cada ano, assim que o verão se aproximava, escreviam de Paris com a última palavra na moda praia, fazendo as ressalvas das pequenas adaptações permitidas às peças usadas pelas mulheres nadadoras. Enquanto a natação e o tênis apareciam como esportes recomendados às moças, o ciclismo não era aprovado por unanimidade, por parecer deselegante.
Publicações como o Jornal das Senhoras ou A Mãe de Família recomendavam às mulheres que se banhassem em locais mais reservados, como a Ilha da Pombeba, no bairro do Caju, a Ponta do Caju ou a Praia do Flamengo. Outra opção eram as barcas de natação, para quem preferia evitar a exposição nas praias. Instaladas no mar diante do Cais Pharoux (atual Praça XV), no Centro, existiam no Rio desde 1810. A partir de 1850, passaram a oferecer, também, tanques de natação. No entanto, a despeito dos esforços pela discrição, em abril de 1896 estreou no Recreio Dramático uma peça de Moreira Sampaio que debatia, com ironia, os novos hábitos da sociedade fluminense, inclusive os banhos de mar, chamada Rio-Nu.
A demanda por privacidade em breve seria solucionada por mais uma iniciativa capitalista: a criação de casas de banho no litoral pela empresa Banhos Populares Fluminenses, nas quais era possível trocar de roupa, guardar os pertences e, mais importante, ofereciam banheiros-nadadores (funcionários que auxiliavam os clientes) para acompanhar as senhoras ao mar. Pelo menos para os homens, se tornar um nadador representava garantir para si a “altivez de quem ama o perigo”, conforme descrito pelo jornalista Joaquim Serra em O Paíz, na última década do século XIX.
Boa imagem desde o início
As “corridas marítimas” ou “páreos de nadadores” atraíam multidões às praias, incluindo pagantes nas arquibancadas e espectadores que assistiam às provas em embarcações, especialmente quando surgia algum ingrediente novo. Como no caso de Adélia Cardoso da Silva, de família elegante, que aos 20 anos saiu vitoriosa em um torneio. Iniciativas coletivas também ganhavam frequentemente as páginas dos jornais. Formada por empregados do comércio, a Associação Humanitária de Natação foi fundada em 1867 e recebeu boa cobertura da imprensa por serviços prestados. Dizia seu estatuto: “Instruir os sócios na arte da natação, estabelecer corridas públicas, honrar com uma medalha qualquer sócio e gratificar com um prêmio pecuniário qualquer estranho que, na baía do Rio de Janeiro, salvar de afogar-se algum seu semelhante”.
Existia, então, a ideia de que a natação era o lazer com uma função, uma diversão que também tinha uma finalidade social. Em breve as associações de remo inauguravam suas próprias escolas de natação. No entanto, a mais importante agremiação divulgadora das competições na cidade seria criada apenas em 1896. O Clube de Natação, localizado junto ao Boqueirão do Passeio, oferecia também aulas de ginástica, esgrima e remo. Os eventos realizados pelo clube foram incluídos na agenda de eventos da cidade e reuniam os mais diferentes estratos sociais, com forte adesão feminina, mas principalmente representantes jovens dos novos setores urbanos, como comerciantes, proprietários de pequenas indústrias e profissionais liberais. Essa parcela da população gravitava em torno do Centro porque ali se respirava ares de vanguarda, com mais flexibilidade em termos de aceitação de modismos contrários aos rígidos costumes da época.
Renomeada mais tarde como Clube de Natação e Regatas Santa Luzia, a agremiação existe até hoje e, durante muito tempo, promoveu ações em conjunto com outros clubes. Essa dinâmica de sociabilidade parece ter sido o que realmente caiu no gosto dos cariocas, que sempre apreciaram formas de entretenimento socialmente compartilhadas. Por meio do crescimento do interesse pelos esportes náuticos e pela natação, a relação dos habitantes com o litoral cresceu, gerando a ocupação e a valorização das moradias na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, especialmente após a introdução do serviço de bondes e da abertura do Túnel Velho, ligando Botafogo a Copacabana, em 1892.
Fontes:
MARTINS, Giselle Barreto; LIMA, Guilherme Cunha. Do nu ao vestido: o traje de banho feminino e a cultura praiana carioca no século XIX. 10º Colóquio de Moda – 7ª Edição Internacional – 1º Congresso Brasileiro de Iniciação Científica em Design e Moda 2014.
MELO, Victor Andrade de. Enfrentando os desafios do mar: a natação no Rio de Janeiro do século XIX (anos 1850-1890). Revista de História. São Paulo, n. 172, p. 299-334, jan-jun 2015.
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