A assinatura do Decreto Municipal no 41.172, em 23 de dezembro de 2015, representou um marco na história recente da cidade. A partir daquele momento, o Rio oficializou a intenção de se organizar para investir na formação de público leitor, por meio de um grupo de trabalho voltado para a elaboração de um Plano Municipal do Livro, Leitura e Bibliotecas – o PMLLB.Rio. Tomando como base o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), nos dias 29 e 30 de abril foi, então, realizado um fórum na Biblioteca-Parque Estadual, no Centro, sob a coordenação das secretarias de Educação e de Cultura do município. Ele é o ponto de partida para próximas ações, programadas para acontecer entre maio e julho de 2016.
Esse primeiro encontro contou com especialistas e representantes das cadeias criativa, mediadora e produtiva, interessados em discutir os quatro eixos que norteiam a redação do documento: a democratização do acesso ao livro; a formação de mediadores para o incentivo à leitura; a valorização institucional da leitura e o incremento de seu valor simbólico; e o desenvolvimento da economia do livro como estímulo à produção intelectual e ao desenvolvimento da economia nacional.
“O movimento envolve a Casa Civil no grupo de trabalho, como também escritores, ilustradores, editores, pesquisadores, mediadores de leitura e outras instituições, inclusive a Frente Parlamentar do Livro e da Leitura da Câmara dos Vereadores. A mobilização institucional foi feita. Mas é importantíssimo o envolvimento da sociedade civil na iniciativa que partiu do poder público”, afirma Simone Monteiro, gerente de Mídia-Educação da Secretaria Municipal de Educação, e coordenadora do projeto do PMLLB.Rio, ao lado de Gisele Lopes, gerente de Livro e Leitura da Secretaria Municipal de Cultura.
As discussões iniciadas no fórum continuam nas plenárias e nas mobilizações locais que dispõem, inclusive, de um roteiro para quem se interesse em articular encontros comunitários. Atualizações na agenda também estão disponíveis em um perfil no Facebook e pelo Twitter @PmllbRio. A intenção é construir um plano que possa ser votado na Câmara Municipal já no próximo mês de agosto.
Diálogo aberto sobre a importância dos planos municipais
José Castilho, secretário-executivo do PNLL, aproveitou o evento para discutir os aspectos políticos da questão. Ele atribui aos graves índices de iletramento e de analfabetismo funcional, que atingem três quartos da população brasileira, ou 150 milhões de pessoas, a raiz dos desencontros da sociedade brasileira na atualidade. “Quando começou a ser desenvolvido, há dez anos, o plano nacional não partiu do zero, nem foi criado em gabinete. Durante quatro anos foi feita uma consulta pública e o texto final é o consenso possível, com o objetivo de se chegar a um país de leitores. Mas o plano só se realiza quando acontece nos municípios. O marco legal e a luta pelo direito da população à leitura devem convergir para um ponto comum. Precisamos desenvolver o sentimento de que a leitura é um direito.”
O professor reafirmou a necessidade de aproximar as pessoas dos livros. Uma vez que, para além da cultura e da educação, a literatura se relaciona com outras áreas que demandam melhoria urgente, como saúde, justiça e direito à cidadania, a partir do entendimento de que aquele que lê desenvolve o raciocínio, o espírito crítico e a autodeterminação.
“A leitura não é só lazer ou entretenimento; ela promove também a pessoa. Existe uma perspectiva de virada da cidadania quando essa longa transformação ocorrer. Brasileiros com algum grau de analfabetismo funcional não compreendem discursos mais elaborados, não alcançam o que é dito nas chamadas entrelinhas de uma fala e não são capazes de acolher valores simbólicos. Esses excluídos no seu direito à leitura saem em desvantagem numa sociedade que, cada vez mais, se baseia na informação.”
Segundo José Castilho, ações pela formação leitora no Brasil existem há décadas e cada uma delas é fundamental para o avanço geral. No entanto, por estarem fragmentadas, não possuem o fundamental: a escala para uma política pública. Por isso surgiu a demanda por uma convergência dos objetivos comuns, com coordenação e consenso. “Só o Prêmio Viva Leitura já catalogou mais de 15 mil ações em todo o Brasil”, dimensionou.
Leitura como a chave de todos os direitos
Quem lê se sente municiado para argumentar e reivindicar com firmeza, o que amplia a possibilidade de debate no regime democrático, garante Castilho. Mas se tanta gente se preocupa com leitura no Brasil, por que motivo o analfabetismo continua? “Não faltam recursos nem pessoas lúcidas. Falta decisão definitiva de quem tem o mando para realizar o que é necessário”, garante Castilho, lembrando que existe uma diferença entre uma política de leitura e uma política do livro – a mesma que se traduz em compra e não transforma o Brasil em um país de leitores. “O Brasil está lotado de livros encaixotados.” Mas a solução é simples. A partir dos conceitos reunidos nos documentos oficiais se estipulam metas e, para que se realizem, precisam ser criados fundos setoriais no nível federal. Ou seja, existe a necessidade de uma mobilização permanente também para garantir orçamento.
Quanto aos desafios futuros, o especialista lembrou que, hoje, 78 milhões de brasileiros saem da escola sem ter concluído o Ensino Médio. Em 2050, a maioria dessas pessoas estará na faixa dos 60 anos de idade sem jamais ter retomado os estudos, continuando, portanto, analfabetos funcionais. Para essa parcela da população, é fundamental o acesso aos pontos de leitura e às bibliotecas comunitárias, que devem ser valorizados como espaços de formação continuada, na tentativa de suprir a carência de escolaridade formal. “Após dez anos de trabalho, consigo perceber que o PNLL não é mais do Ministério da Cultura nem do Ministério da Educação, ele é o ‘nosso plano’. O PNLL é uma política de Estado, feita até então de maneira errática. Agora, finalmente existe um norte.”
Ato de civilização
A professora e escritora Nilma Lacerda associa a literatura à educação de qualidade. Para ela, a literatura é um território indomado que deve permanecer livre de qualquer jugo, ao passo que a construção e a defesa desse espaço são atribuições da educação. A partir da redemocratização da nação brasileira, a leitura literária saiu do rol de bens restritos à elite e passou para o bem comum. “A experiência da leitura contribui para a formação do caráter humano, na medida em que ajuda a organizar o caos interno de cada um. A leitura se constitui em um ato de civilização ao transformar cada ser que nasce em herdeiro do patrimônio humano.”
Lembrando Aristóteles, a palestrante afirmou que a privação da leitura gera falta de sensibilidade, uma vez que fica difícil para aquele ator social se imaginar no lugar do outro. Fez também referência ao escritor Antônio Cândido, para quem todos os gêneros se incluem na literatura – desde a piada e a cantiga de roda, passando por todo o imaginário humano vertido em palavras, até chegar à epopeia.
Ressaltando que “leitoras e leitores não são criados por decreto”, Nilma Lacerda apontou a necessidade de preparar os chamados ‘formadores de leitores’, especialmente os professores. E concluiu: “O livro literário não tem que dar respostas. A literatura é a forma mais próspera de gerar pessoas responsáveis e de conciliar os abismos de que somos feitos”.